Uma breve crônica antes da
crítica de fato:
Em meados de agosto de 2011, um
terrível inferno astral tomou conta de uma família gaúcha e interiorana. Um
jovem garoto, que então tinha 16 anos e estava prestes a se formar no Ensino
Médio, foi acometido de uma terrível depressão por conta de suas inseguranças,
ao mesmo tempo em que tivera um pré-diagnóstico de um provável câncer de
linfoma. Como seus pensamentos não estavam fluindo da melhor forma, essa
possível doença fora o suficiente para provocar insatisfação com a vida, e
fazer de uma possibilidade uma certeza cruel e enfadonha. Muito drama para poucas vias e fatos, sabemos
disso. Fora também que, em meados de agosto daquele ano, Biutiful (filme
Alejandro González Iñarritu) chegara às vídeo-locadoras. O filme retratava a
história de um homem – interpretado por Javier Bardem - por volta de seus 40
anos, que se vê no final de sua vida graças a um câncer terminal no cérebro.
Sem saber como lidar com a frustração de deixar dois filhos para trás e
cancelar os planos de longo prazo, a personagem se expandia na tela e se
aproximava do espectador com os questionamentos de sua não tão branda vida.
Essa aproximação foi sentida por este tal garoto, por achar que seu drama
dialogava com o universo apresentado. Um capricho púbere, mas que fora muito
importante e esclarecedor no período, dizem. Sentimento, este, raro que aparece
poucas vezes e, que de forma curiosa, se fez mais uma vez presente na vida
deste mesmo garoto, anos mais tarde... Pelas mãos do mesmo diretor.
Birdman – Alejandre González
Iñarritu
Após se manter quatro anos
afastado das telas de cinema, Iñarritu decide voltar com o longa “Birdman ou A
Inesperada Virtude da Ignorância”. Trata-se de um falso plano sequência no qual
o diretor propõe discutir os valores da arte e o egocentrismo humano, o filme é
de fato um acerto cinematográfico e uma obra de cunho filosófico (sem o
pedantismo de suas semelhantes) acessível e cercado de uma universalidade
poderosa. Birdman fala com todos os públicos sobre um assunto não tão claro com
estes, e ao mesmo tempo que questiona a grandeza da arte, reflete sobre para
quem a mesma é feita e em nome de quem (ou qual ego). A história trata-se de Riggan Thomson (Michael Keaton), um ator
que fizera muito sucesso em seu passado interpretando Birdman, um super-herói
que se tornou um ícone cultural. Em busca da fama perdida e também do
reconhecimento como ator, ele decide dirigir, roteirizar e estrelar a adaptação
de um texto consagrado para a Broadway.* Ao mesmo tempo que Riggan tenta levar
adiante sua peça, a voz de seu alter-ego (Birdman) domina sua mente, lhe
fazendo refletir se o mesmo faz isso em nome da arte ou em nome da fama que não
se faz mais presente em sua vida, seria sua peça um fruto da ambição pessoal?
Still frame de "Birdman" (2014) |
Como todo
bom plano sequência, Birdman traz cenas com coreografia precisa e eficiente,
que não só permitem um melhor jogo de cena na atuação de seus protagonistas,
mas também uma sensatez quase documental de sua fotografia (assinada por
Emmanuel Lubezki, responsável pela fotografia de “A árvore da vida”).
Praticamente todos os elementos de interferência visual e de iluminação tem sua
presença justificada, graças à ambiência do universo apresentado: um teatro da
Broadway. Esse cenário permite uma atmosfera mágica e de total imersão, os
atores contracenam dominando todo o espaço enquadrado, e quando um deles está
fora de quadro, objetos permitem uma extensão visual incluindo-os de volta à
cena, seja espelhos ou reflexos de janelas – uma interferência inteligente, e
que já estivera presente em outros títulos do diretor (como “Amores Brutos”, de
2006).
Além de
Michael Keaton, o longa tem outros inúmeros atores que se demonstram não apenas
bem ensaiados como também extremamente funcionais em cena, não há uma única
atuação que deixe à desejar e todos parecem entregues à insanidade do
protagonista (destaque para Edward Norton e Naomi Watts, no papel dos colegas
de cena da peça). Atuações que ganham maior destaque quando acompanhadas dos
belos diálogos apresentados durante as duas horas de filme, um acerto enorme
devido à importância que as falas representam no mesmo, não só no sentido narrativo
ou didático, mas também na criação da atmosfera representada, afinal, estamos
em um teatro e aqui as coisas devem ser ditas de forma clara e forte.
Com um
estado psicótico em evolução o filme cresce à medida que o protagonista fica
mais louco, chegando ao momento que tanta insensatez se torna quase palpável
para o espectador. Alguns elementos cenográficos começam a se transformar em
semiótica pura e exibicionista, como se os estado mental do personagem agora ocupasse
forma física e interferisse geograficamente a todos que o cercam. Loucura essa
que acaba nos remetendo a outros dois grandes filmes que trabalham com o tema:
“Cisne Negro” dirigido por Aronofsky e o clássico “Crepúsculo dos Deuses”, de
Billy Wilder. Birdman se encerra com a máxima mais radical da arte, longe de um
niilismo momentâneo, dando sangue em troca de sua realização – de forma literal.
Still frame de "Crepúsculo dos Deuses" (1950) |
Pela
primeira vez Iñarritu não trata de um assunto político-social, mas sim daquilo
que sempre o incentivou à fazer cinema - o amor pela arte – e mesmo assim não
deixa a atmosfera pesada de seu drama se afastar, reflexões mais poéticas e
nuances não tão sucintas ainda permitem uma provocação direta com o espectador
que mesmo sem ter uma identificação clara com os personagens, acaba por
compreender e partilhar das frustrações vividas na tela. Seja a trilha do jazz, as referências atuais
ou o contexto em que o filme é situado, alguma coisa neste universo criado por
Iñarritu não só cativa, como também humaniza aquilo que endeusamos e
sofisticamos tanto, a arte. Por fim o diretor afirma que a mesma não só nos
torna mais transparentes, como também nos faz ser quem somos.
*Sinopse
retirada do site adorocinema.com.br
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